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Estudo associa hidroxicloroquina e cloroquina a aumento da mortalidade de pacientes com covid-19

O uso de hidroxicloroquina em pacientes com covid-19 está ligado ao aumento da mortalidade. A conclusão acaba de ser publicada em uma das revistas científicas mais respeitadas do mundo, a Nature. Pesquisadores e médicos torcem para que mais esta evidência ajude a frear o uso indiscriminado do remédio, que compõe o ineficaz e inclusive, como agora apontado, maléfico “kit covid” para o alegado “tratamento precoce” da infecção por coronavírus.

A recém-divulgada meta-análise se trata de uma revisão de outros estudos. Os pesquisadores filtraram milhares de artigos até chegarem à amostra de 28 ensaios clínicos randomizados (comparação entre grupos de controle e com medicação) que foi esmiuçada, envolvendo mais de 10 mil pacientes (a grande maioria internados). “Descobrimos que o tratamento com hidroxicloroquina está associado com maior risco de mortalidade para pacientes com covid-19, e não há benefício da cloroquina”, resumem os autores.

A principal diferença entre as duas drogas é que a hidroxicloroquina tem menos efeitos colaterais e potencializa a ação anti-inflamatória quando comparada à cloroquina. Ambas são indicadas para o tratamento da malária, de doenças autoimunes, como lúpus e artrite reumatoide, e moléstias fotossensíveis. 

O surgimento da pandemia convulsionou o meio científico. Em busca de possíveis tratamentos para a infecção por Sars-CoV-2, quase 700 pesquisas tiveram início apenas nos quatro primeiros meses do ano passado — uma em cada cinco investigações estava relacionada à hidroxicloroquina ou à cloroquina, conforme levantamento destacado na análise. 

No princípio da crise sanitária global, as medicações foram autorizadas para uso emergencial hospitalar em diversos países, mas logo começaram a surgir evidências de que não contribuíam para a melhora dos pacientes. Verificaram-se também reações adversas, como arritmias cardíacas. E, agora, a publicação da Nature destaca a elevação do número de óbitos. 

Médica infectologista, Andréa Dal Bó, membro da Sociedade Rio-Grandense de Infectologia, recorda a própria experiência com os casos atendidos na fase inicial.

— Usei hidroxicloroquina em quatro pacientes, e três tiveram arritmia dentro do hospital. Parei de usar. Esse risco existe também para a população em geral (fora do ambiente hospitalar). Não é uma medicação inócua — adverte Andréa.

Para realçar a importância dessa publicação da Nature, o infectologista Claudio Stadnik, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, resume como se dá a formação de evidências na medicina. No estágio dos experimentos laboratoriais, a hidroxicloroquina e a cloroquina pareciam promissoras. Produziram-se estudos observacionais e, com o tempo, pesquisas melhores e mais robustas, que são os ensaios clínicos randomizados. Essa evolução exigiu tempo, aprovações em comitês de ética, recursos financeiros. 

— Existe uma série de passos para chegarmos cada vez mais perto da verdade. Claro que nunca chegamos a uma verdade total, ninguém é dono da verdade, é tudo uma evolução, mas com um certo dinamismo — pontua Stadnik. 

Com diversos estudos de qualidade sobre o mesmo tema — aplicados em diferentes populações e localidades, por investigadores distintos —, a comunidade científica se assegurou de que a hidroxicloroquina e a cloroquina não davam resultado contra a covid-19. O papel da meta-análise destacada na Nature foi reuni-los e interpretá-los.

— Antes não dava para fazer uma meta-análise porque não havia estudos suficientes. É como se você tivesse vários livros, várias experiências para juntar como se fosse uma só — explica Stadnik. — Esses estudos mais elaborados comprovam a percepção que vínhamos tendo: a hidroxicloroquina não tem eficácia e, pior, pode, sim, aumentar a mortalidade nesse grupo de pacientes — acrescenta. 

Ao longo do último ano, pacientes com uso regular de hidroxicloroquina enfrentaram dificuldades, em certos períodos, para encontrá-las em farmácias, dada a corrida de clientes em busca do chamado “tratamento precoce”, até hoje exaltado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e prescrito em muitos consultórios. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou que essas substâncias não funcionam contra a covid-19, alertando para os efeitos colaterais, assim como vêm fazendo os mais reconhecidos órgãos de controle sanitário e associações de especialistas. 

A pesquisa esclarece que o uso profilático (preventivo) da hidroxicloroquina e da cloroquina não foi avaliado, bem como outras consequências além das mortes, mas Andréa aproveita a discussão para pedir que não se utilizem quaisquer medicações do “kit covid”, sob pena de comprometer diversas funções do organismo. 

— O impacto disso, a longo prazo, é muito grande: problema hepático e renal, arritmia. Temos dificuldade de tirar a sedação desses pacientes (que precisam de respirador artificial) por comprometimento do sistema nervoso central. Não se deve fazer automedicação ou, pior ainda, usar esses medicamentos prescritos por colegas médicos, sem embasamento científico nenhum — apela a infectologista. 

— Se não tem eficácia no tratamento, por que eu acreditaria que funcionaria como profilaxia? Seria ilógico. A covid-19 é uma doença inflamatória séria, importante, desde o início, mesmo que com poucos sintomas. 

Ao avaliar a insistência de médicos e políticos no incentivo do consumo desses medicamentos, o infectologista da Santa Casa lamenta: 

— Meu primeiro pensamento é de tristeza. Uma questão que todos nós, médicos, aprendemos desde a faculdade e que as pessoas sérias defendem com unhas e dentes é a defesa da ciência. Não é só uma questão ideológica, mas também financeira, que é quase sempre onde a gente termina. Muitos colegas viram isso como possibilidade de ganho, de aparecer na mídia. E tem também toda uma questão psicológica de querer achar uma solução mágica para um problema sério. Essa discussão sobre a hidroxicloroquina não existe em outros países. Não estaríamos fazendo esta entrevista em outros países. Será que todos os outros são burros? 

 

Fonte: Gaúcha ZH 

Foto: Félix Zucco / Agencia RBS


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