Pai, afasta de mim este cálice de vinho tinto de sangue
Chico Buarque de Holanda
Soraia Schmidt
A imagem é forte. O tempo passa, mas ela não. É sempre tocante. Talvez por força da religião católica que a transformou em símbolos da vida. O pão como corpo, o vinho como sangue. Pão e corpo como matéria, pão como alimento do corpo. Vinho como sangue, o vivo menos sólido, mais etéreo; o espírito, a alma, e, a eles, também é alimento. Simbolicamente, significa a vida como material e imaterial e suas fontes de energia. Vindas da terra, produzidas pelo homem. E cá estamos nós, os humanos, alimentando corpo e alma, infinitamente, pois é fome que não se mata.
Viva o pão e viva o vinho - muito mais o vinho, é claro!
O pão, creio ser um dos alimentos manufaturados mais antigos da humanidade. Com maestria, da semente ao fruto, da farinha ao forno. Com alto valor energético e de rápida absorção, sacia quase instantaneamente. Talvez por isto nos viciamos. A delícia do cheiro de pão assando ou assado, está impregnado em nossas células há séculos.
Será que existe alguém que não goste de pão?
E o vinho? Outra obra de arte líquida. Mas de vinho, com certeza, há quem não goste. Os alimentos da alma são muito mais variados, diversos e exóticos. Alguns, até veneno.
O cálice? Charmoso, antigo, acolhedor. Sólido. Remete ao tempo de quando não havia vidro, cristal. As coisas duravam mais, não eram descartáveis. Serve para partilhar. Serve ao ritual.
E quem sabe nem contém vinho, mas água. Não por isto, menos sagrado. O sagrado vem da fé. Fé no que acreditamos ser puro, belo, verdadeiro. O que nos dá paz, harmonia e bem estar profundo.
Sagrado é a nossa casa, nosso templo.
Sagrado é nosso alimento.
Sagrado é a natureza, os ecossistemas, a biodiversidade, as trocas simbióticas.
Sagrado é o silêncio, o ar puro, a cooperação entre os humanos, o respeito. A liberdade.
Sagrado é ter o que comer
Sagrado é ter onde morar
Sagrado é ter bem estar
Sagrado é ter diferenças
Sagrado é ser aceito
Sagrado é ter amor
Sagrado é saber ser humano.
A imagem é forte. O tempo passa, mas ela não.
Bateram até a morte do homem negro. Porto Alegre, 20/11/20.
Texto escrito para o módulo Mosaico da Oficina Santa Sede